Saturday, March 29, 2014

Crônica de insônia


Abriu a janela e sentiu o vento batendo em seu rosto. Observou o edifício que interrompia o horizonte. As janelas estavam quase todas fechadas, talvez para espantar o frio, que não era tão forte que provocasse um tremor em seu corpo como o que sentia na alma. Tateava entre equilíbrio e o desequilíbrio. Olhou para baixo e decidiu fechar a vidraça. Melhor não olhar mais. Permaneceria inerte, completamente imóvel, para não desmoronar.

Em meio à sensação gélida que lhe sobreveio pela curiosidade sobre a morte, percebeu subitamente que estava atrasado. Para dormir? Sim, para dormir. Já era a primeira hora do dia seguinte e em pouco tempo precisaria acordar para mais um dia de trabalho.  

Enquanto caminhava novamente para a cama que o aguardava, talvez mais ansiosa que ele, pensou na solitária luz acesa do edifício que era um óbice no horizonte daquela cidade. O que ela fazia luzindo? A companhia daquela lâmpada estaria tão submergida quanto ele?

Gostava de imaginar a rotina dos que não notavam sua existência. Considerava que o dia a dia dessas pessoas seria sempre, inevitavelmente, mais alegre e atraente que o seu.  Possuíam certamente uma rotina com mais expectativas. Se o ser estava acordado, tinha realmente um motivo muito mais nobre que a sua insônia triste: um filme encantador, um livro absorvente, uma conversa prazerosa.

Depois da constatação óbvia, tentou se lembrar da última vez em que esteve contente. Adormeceu antes de superar seu esquecimento. Acordou antes de aliviar o seu cansaço.

Wednesday, December 04, 2013

Conjecturas

Não sou mais o que eu pensei que fosse.
Nem sou o que pensei que seria.
Entre a morte e a agonia,
Sou aquela vontade, insistente, da vida...

Monday, March 01, 2010

Je manque de tout

Tenho pensado muito nessa coisa que é a saudade.
Mais densa que a ausência.
Mais intensa que a falta.
Mais animosa que a carência.
Uma sensação aguda, que se tem quando se pensa num desejo não realizado, num instante indefinido.
A consciência posterior do momento vivido.
Concluí que sinto saudades de tudo, tudo!
Porque a não se tem somente do pretérito.
Sente-se saudade do depois, por isso pressentimos.

São Bernardo do Campo

Uma Terra Nova.
O astro rei despontando bem ali, na Salim Mahfoud.
A velha Rua Júlio Barazal Salgado amanhecida úmida, sob o som dos pássaros.
A infância de bola, pega-pega, esconde-esconde.
Os espetáculos de patins na rua, sob o calor das férias de verão, disfarçados de Holiday on Nice.
O entardecer atravessando a janela do antigo apartamento de meus pais.
O cheiro de eucalipto que chegava com o pôr do sol.
A amiga que morava na casa da frente e tinha um sótão em que eu deixava meus brinquedos para não ter o trabalho de levá-los no dia seguinte.
Amanda, Carolina, Camila, Fernandinha, Mayara, Melina, Sabrina.
O carpete cheio de super-massa.
As crianças e as brigas que se restringiam à decisão da próxima brincadeira.
A piscina de mil litros e os mergulhos para encontrar os anéis que vinham em chicletes.
O tempo em que os conflitos afetivos se limitavam ao menino para o qual eu queria pedir salada mista.
O gelinho de chocolate que a Diva vendia (e o filho dela - que me paquerava).
José Gomes Moreno? Homem ou rua?
As festas juninas da escola e o correio elegante. O pedir prendas. As quermesses.
A angústia que era precisar estudar para a atividade de Matemática.
A certeza que eu tinha de que um dia seria grande astrônoma.
Carla cabeleireira, Rosália manicure.
Pulo mercado. Quitanda da rua de cima.
Olhar as estrelas no céu e apontá-las esperando que em meus dedos nascessem verrugas.
Dançar no carnaval (e gostar).
A pizzaria do irmão da Vanessa.
Primeiro porre.
Primeiro beijo.
Primeiro sexo.
As cantorias na calçada.
A adolescência vivida entre vigílias e louvores.
A missa rezada pelo padre José.
Minha mãe me chamando aos berros na sacada, enquanto eu pedia só mais cinco minutos na rua.
Meu pai me levando à praça para brincar (ainda sou do tempo em que havia praças, não apenas shoppings).
O descer a rua com roupas de balé.
O bailar pelos corredores do condomínio.
O encher a sala de colchões para dormir com os amigos depois do tradicional pão com truco.
A Av. Kennedy e seus bares.
A alegria que a gente não se dá conta enquanto vive, mas que, experimentando sua ausência, procuramos, procuramos, procuramos...

Jogos de Carta

Do encontro:
Ela, só uma menina. Daquele tipo que ainda não sabe bem o que vai ser quando crescer (se é que, quando se cresce, descobre-se esse tipo de coisa).
Ele, um homem casado que, nem bem se sabendo ou se descobrindo, já era crescido.

Da rotina:
Ele passava tardes em Itapuã, oferecendo ao mar de Iemanjá sete notas musicais e sete amores.
Ela, que não era filha de Iansã, caminhava pelas ruas sem cais, sem paixões e sem rubores.

Do presente:
Sete anos se passaram.
Pela primeira vez, olhar-se-iam nos olhos e, possivelmente, não viveriam felizes para sempre.
Do baralho dela, ele era Coringa.
Entre as cartas dele, ela não era a rainha. Mas queria, ah como queria...

Friday, February 12, 2010

As mães não contam que...

...o príncipe encantado facilmente deixaria de procurar quem tivesse um pé cabível no sapatinho encontrado caso a irmã da Cinderela fosse gostosa.

Tuesday, January 26, 2010

Acho que...

algumas pessoas têm tanto medo de estar sós, que frequentemente não conseguem distinguir se estão acompanhadas pelo prazer da companhia ou por carência.

Wednesday, October 28, 2009

É possível culpar o termômetro pela febre?

Aproximadamente às 23h de ontem, o professor Chateano interpelou à sala:

Os direitos humanos estabelecem que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade. No entanto, não é isso o que acontece. Qual a solução?

A sala toda permaneceu em silêncio. Ele insistiu:

Mocinha dos cabelos enrolados, o que você acha? Qual é a solução?

Demorei para acreditar que a mocinha dos cabelos cacheados fosse eu. Demorei para acreditar que o professor estivesse fazendo aquela pergunta tão pueril. Olhei no fundo dos olhos dele e respondi com sinceridade:

Ora, professor! Não sei! Mas se o senhor souber, me avise, pois no próximo ano esperarei vê-lo recebendo o prêmio Nobel depois de Obama!

A sala gargalhou. O professor ficou constrangido. Tentei remediar:

O senhor já leu "O Paradoxo dos Direitos Humanos" do Robert Kurtz? Não. E "O Mal-Estar na Civilização"?
Poxa, talvez eles respondam o que eu penso sobre Direitos Humanos. A sala Vip só faz sentido, porque existe a sala de espera comum. Será mesmo que o ser humano está disposto a ser igual? Será? O senhor, particularmente, prefere a pista ou o camarote? Ser cliente Itaú Personalité ou Bradesco nada Gold? Faz sentido pensarmos em Direitos Humanos em uma sociedade tão desigual?

A aula de Questões Etnico-Raciais foi encerrada.

Será que, nesse caso, romper com o desejo de sermos iguais nos levará ao caminho óctuplo? Será que o segredo é não pensar, não agir e insinuar que cada um é responsável pelo próprio caminho como se não interferíssemos nos caminhos uns dos outros o tempo todo? É possível culpar o indivíduo pelo Estado ou o Estado pelo indivíduo?
O que me preocupa mesmo é o estado... o estado de alma dos indivíduos e de mim nessa teia social, porque não sei mais se estou do lado da aranha ou da mariposa.

Sunday, August 23, 2009

O cara certo

Quando pequena, acreditava que príncipes encantados existissem.
Talvez essa noção fosse fruto do que ensinam os contos de fada, as mães e os filmes... Ainda que eu não more aprisionada em uma torre, fisicamente, pensava que a felicidade chegaria por meio de alguém que me libertasse dessa mesmice que a vida parece às vezes.
Conforme o tempo vai passando, a gente descobre que há muitas pessoas legais no mundo. E, de repente, surge uma que adora vídeo-games e não lê Machado de Assis, mas mesmo assim é legal. Quando lhe convidou para ir ao cinema pela primeira vez, no lugar de uma comédia romântica, assistiram a um tosco terror. Mesmo assim, saíram no fim de semana seguinte.
Enquanto você está preocupada com o futuro das crianças que não têm acesso à escola, ele está pensando em precificação de ativos e, mesmo assim, você o acha inteligente.
Você adora turma da Mônica, e ele adora mangá... mas continua sendo interessante.
Você sugere um jantar à luz de velas, e ele o pior bar de rock da cidade, mas ele, do mesmo modo, continua "fofinho".
Daí a gente se pergunta se faz sentido esperar pela "alma gêmea" ou se o melhor da vida está nas diferenças do que não é gêmeo ou sequer parecido. Vai ver eu não estava certa sobre a pessoa ideal ou o príncipe encantado, porque todos nós - humanos - temos um pouco de anfíbio no âmago, algo que passa longe da nobreza de alma... Mas eu estava certa sobre a felicidade que vem e nos liberta da mesmice. Que nos faz achar a noite divertida, mesmo quando se atravessa a cidade e não se consegue comprar o ingresso desejado... Que nos faz achar a cama o melhor lugar do mundo e o seu namorado o cara mais bonito e engraçado (mesmo que ele ria de você não conseguir tirar o carro do lugar).
A vida é cheia de surpresas agradáveis...